HOMENAGEM
Luto pelo médico Ricardo Cruz é saudade e gratidão

HOMENAGEM
Luto pelo médico Ricardo Cruz é saudade e gratidão

Transcrito da coluna da Dra. Margareth Dalcolmo
Publicado no Globo no site https://blogs.oglobo.globo.com em 15/12/202
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O médico Ricado Cruz

A Denise, André e Pedro

Há uma semana escrevi sobre “o mais transatlântico dos sentimentos: a saudade”, de acordo com Eduardo Lourenço, que acabara de partir. Não pensara que hoje o repetiria, somando à saudade uma profunda gratidão pelo convívio com um grande amigo; um médico, na acepção completa do que isso possa representar, sob o modelo de nossos mestres; Ricardo Cruz, que nos deixou, levado pela Covid-19.

Conheci poucos com tamanha paixão pelo fazer, nutrido pelo rigor científico, curiosidade bonita, quase juvenil, consciência crítica implacável e a generosidade com o outro, própria dos grandes. Leitor de prosa e poesia, ouvinte de Beatles, Rolling Stones e do melhor da música brasileira, celebrou com ardor o Nobel de Literatura a Bob Dylan, navegou pelos conflitos existenciais com a mesma voracidade com a qual percorreu textos científicos relacionados à sua especialidade.

A exigência característica dos artistas e estetas o levou por décadas em seu profundo aprendizado como cirurgião de excepcional habilidade, a recuperar tantos rostos — tantas identidades —, cujo reconhecimento entre seus pacientes e pares consagraram sua trajetória. Triunfo e honra? Não, o compromisso de criar, o desassombro de revelar afeto, na relação médico paciente, razão pela qual criou o grupo Humanidades na Saúde, durante os últimos cinco anos palco de emocionados momentos para um público crescente e fiel.

A última sessão do ano do Humanidades teria sido “Pandemia nove meses depois: o ano acabou… E agora José?”, na qual falaríamos, o professor Benilton Bezerra, psicanalista, e eu, sobre “A mente” (ele) e “O corpo” (eu). O cuidado com que foi preparado o evento, inclusive com a divulgação pronta, incluindo poema do Drummond, deixa-nos, sem ter ocorrido, porquanto aguardávamos a sua volta, um sentido de vazio extraordinário, e de dever não cumprido. Um réquiem inacabado. Ele não perdoaria!

Conversamos muitas vezes, algumas mais divertidas, outras mais profundas sobre questões médicas, as angústias humanas, as alheias e as nossas. Porque a diversidade das pessoas é a chave da evolução humana, coisas assim. Riu muito quando lhe contei que havia ido em busca da casa do poeta Rimbaud, em Adem, Iêmen, e que encontrara no local um letreiro vertical em néon escrito Rambo. Terminamos essa prosa sob a fórmula de amor de Rimbaud, a da busca de uma verdade que esteja ao mesmo tempo dentro da alma e dentro do corpo.

Dor e derrota não precisam ser paralisantes, ao contrário. Em nós que tivemos o privilégio de conviver com Ricardo, impulsionam e iluminam, como uma epifania. Ao longo de nossas trajetórias algumas vidas riscam indelevelmente as encruzilhadas, e acertam atalhos nas relações. Quando adoeci com a Covid-19, suas mensagens de preocupação, suas perguntas objetivas, quase uma doce sentença (“mas você está melhor, não?”), chegavam com a pontualidade de antibiótico endovenoso e o genuíno cuidado de que se tecem as verdadeiras amizades.

À sua família e aos muitos amigos com quem compartilhou bem querer, e que hoje fazem de sua presença uma permanente inspiração, fiquemos com Santo Agostinho, perene em sabedoria: “Qualquer um que esteja em mim, seja maior que eu mesmo”. Simples assim, ele diria.